Hoje li um texto lindo publicado em um blog que leio diariamente.
Ele me fez refletir no tanto que aprendemos com as pessoas queridas (e as nem tanto) que passam pela nossa vida.
Este assunto sempre me ronda e me delicio em pensar no tanto que acumulamos e no tanto que percebo em mim, jeitos, práticas, falas dos meus pais, avós, amigos e familiares...
Reconheço estas heranças deixadas e penso no que deixarei ao João Victor. O que ficará nele da minha essência? O que ficará registrado e que será sua herança a cada vez que lembrar de mim???
Quando penso no meu pai, penso no jeito sarcástico e debochado dele. Ainda vejo-o com prazer a frente da churrasqueira, vindo da feira alegre em trazer minhas frutas preferidas. Vejo cerveja Brahma e lembro dele, vou a um bar descolado e penso se ele gostaria do lugar.
Da vó Iracema, trouxe a vaidade, a paixão pelo belo e pelas panelas, receitas, boa mesa.
Da minha doce mãe, o afinco pelo trabalho, pela independência e a devoção à maternidade.
Da minha amiga Wanne, a paixão pela moda, da Bia o amor pela decoração...
Da tia Vilma, os pensamentos de uma maternidade descolada, que respeita o desejo do filho e deixa-o leve para exercer suas escolhas.
Da minha querida comadre Flávia, a conjunção entre ser mulher e ser mãe, que se descobre e redescobre continuamente.
De outros tantos amigos, virtuais ou não, que diariamente me contagiam, me ensinam, perfumam a minha vida e muitas vezes não se dão conta.
à todos eles, dedico este texto:
Sábado
de manhã. Estamos nos arrumando pra sair, acabo de passar batom e ouço
meu filho correr para a porta, dizendo: “Vão bora?” E a entonação é tão
perfeita, que é como se eu ouvisse a mim mesma.
No almoço, ao servir o prato de uma amiga, percebo um quê da minha
avó em mim. “Falta o componente”, eu me vejo dizer. Era seu jeito
particular de avisar que o prato ainda não estava completo. E isso já é
tão meu que sai sem pensar.
Passamos pelas pessoas. Pessoas passam por nós.
Da convivência com um ex-namorado de fina delicadeza, herdei o
cuidado de chamar as pessoas de queridas. E é sempre com o carinho
genuíno de quem quer que o outro se sinta mesmo benquisto.
Da minha mãe, herdei o barulho da risada e a mania de guardar o
guardanapo amassado na mão fechada até o fim da festa. Do meu pai, ficou
o gosto pelos detalhes e o pavor de vento nas costas.
Mas nem só de pessoas que se foram herdamos veludos na fala, palavras
bem escolhidas, trejeitos que acabam passando para os que vêm depois de
nós.
Os que não estão mais aqui ficaram. E há quem já tenha ficado sem nem mesmo ter ido.
Tive uma amiga que se foi, sim. Da minha vida, não do mundo. Mas
deixou tanto dela em mim que às vezes sinto sua presença. E das minhas
piadas rio com a sua inteligência. E adivinho as críticas que ela faria.
Foi, mas ficou. Devo ter ficado nela também.
E assim nunca estamos sós.
Conto como meus alguns casos engraçados de uma família que não é
minha, mas do meu ex-marido. E o relato tem o ritmo e a entonação dele,
suas risadas pontuando o caso. São as lembranças boas que
ficaram. Heranças.
De uma amiga que hoje mora longe, ficou o sabor do frango a
passarinho e da caipirinha, cardápio semanal da nossa troca de
confidências. O tempo e os fatos não abafaram o ruído típico das terças-feiras naquele tradicional restaurante português. No meio do barulho, nossas risadas.
Somos feitos de quem passa por nós. Vamos nos misturando em gostos,
aprendizados, histórias. E assim somos um pouco mais o outro, sem deixar
de ser cada um de nós.
E se o tempo é de interatividade sem fronteiras, somos até mesmo quem
sequer conhecemos. Somos o que ouvimos, o que lemos, o que vimos. Somos
o que nos toca. O que assusta ou preenche. Somos o oposto que choca.
Somos o igual que conforta.
Sou a peça de teatro a que assisti duas vezes, o filme que me fez
chorar, a viagem que não fiz, mas cujas fotos me impressionaram. Sou a
biografia de alguém que já morreu. Sou o que quero ser.
Sou a empregada emburrada que me negava o suco antes do almoço. Sou a
lágrima que me corria diante do prato de comida em frente ao suco. Sou o
bacalhau disputado. O chefe que bocejava com som de filme de terror.
Sou o porteiro que estava sempre de acordo. Sou musical, como o cartão
que o amigo do meu avô enviava todo Natal. Sou o show do Prince, a
camareira senegalesa do hotelzinho em Paris, o negro curaçaolenho que me
indicou o caminho para a ponte.
Sou meu professor de redação publicitária e sua risada sarcástica que
apavorava os alunos. Sou os olhos brilhando da avó de uma amiga – e sei
fazer goiabada da roça. Sou os meninos carentes do Vale do
Jequitinhonha: seca de abraço. Sou elétrica, mas mora em mim o olhar
calmo do professor de ioga. E mora a faxineira tristonha, o velho de
muletas, o cachorro magro na rua, a perua no alto do carro importado, a
fumaça do ônibus, a guerra na favela. Sou o que fica impresso na retina.
O que maltrata o coração. O que o bombeia de volta.
Sou muitas pessoas e de muitas delas nem sei os nomes. Sou lugares,
momentos, cenas, sou o que não aconteceu. Sou frustrações e conquistas.
Sou a falta de quem deixou de passar por mim. Sou o silêncio do que não
li. A ignorância que pergunta. A criança que eu queria ter sido, a velha que quero ser.
Cada fato ou alguém que sou me diz um pouco mais de mim. E com tantas
novidades sobre mim à minha volta, vivo surpresa. E meus olhos não
perdem o viço.
Publicado na revista Encontro em 2011
Nossa, que post lindo! inspirador :) é legal ver como nossos filhos herdam manias que a gente nem percebia que tinha :) obrigada pelos seus comentários e pelo teu email, me ajudou muito!
ResponderExcluirbeijos
Lindo, lindo, lindo! E obrigada pelo comentário carinhoso! Vamos em frente! Beijos! Nine
ResponderExcluirLindo texto. Que deixemos só coisas boas...
ResponderExcluirBj!